JESUS NÃO COMPRARIA UMA PISTOLA!

SOBRE O CENÁRIO.

A passagem tem sido usada constantemente por Bolsonaro e por bolsonaristas para defender o “armamento da população”, isso para além dos problemas de segurança pública (contrariando especialistas no assunto), junto a isso o atual presidente e candidato à reeleição encabeça uma campanha por estabelecer um cenário político-eleitoral onde campos opostos digladiam pelo comando, não apenas da nação, mas principalmente de seu destino espiritual, que dentro desta narrativa estaria dividido as forças do Bem e as forças do Mal.[1]

Não pretendo aqui tratar das implicações nefastas da narrativa levada em efeito pelo dignatário maior da nação, e afirmo minha discordância veemente a que se conduza a campanha eleitoral por essas paragens e se estabeleça o completo clima de animosidade mesmo no terreno onde outrora esperasse encontrar amparo e conforto num mundo já tão marcado pela dor e por sofrimento: o terreno da fé. Como cristão, exegeta, pesquisador e cidadão, eu sinto que devo me pronunciar acerca do uso e apropriação do texto bíblico e da representação de Jesus Cristo, com vistas a justificar seus preconceitos, principalmente quando esses preconceitos colocam sobre o outro, o diferente, a alcunha de inimigo do Bem e da Verdade e carrega, mesmo que veladamente (e muitas vezes nem tão veladamente assim), a mensagem que o outro deve ser subjugado[2] ou eliminado[3]

SOBRE A INTERPRETAÇÃO.

Para se fazer uma interpretação que busque a significação de um texto (dentro daquilo que nos é possível encontrar) é necessário permitir que o texto fale por si, embora, muitas vezes sua fala não nos seja clara, não nos seja compreensível. Isso ocorre por razões diversas, tais como: a perda de conexão entre o sentido de uma palavra na língua original e a sua tradução, daí a importância em se conhecer a língua original do escrito que se pretende interpretar, ou, ao menos, recorrer àqueles que tenham esse conhecimento, ou ainda fazer uso de instrumentos que possibilitem o máximo a apropriação do texto original (por exemplo, léxicos e comentários), essa tarefa compõe em especial o exercício do exegeta que se debruça sobre o texto “nu e cru”, buscando tirar do mesmo o seu significado.  Outro fator que nos dificulta a compreensão de um texto é a distância temporal entre o escrito e nós mesmos; a diferença entre sua realidade histórico-social e nossa; a atmosfera espiritual e moral que envolve o autor e sua época e da qual nós não participamos; todos esses contextos precisam ser investigados, além dos contextos mais imediatos, como do capítulo onde o texto se encontra, do livro, de seu gênero literário e assim por diante, essa árdua tarefa compete ao exercício da hermenêutica que junto à exegese, ou mesmo abarcando-a, examina os diversos contextos na busca dos fatores que determinaram ou influenciaram o autor em sua escrita tal como se apresenta, na escolha das palavras, dos valores que  fundamentam o escrito, nas relações que nutre com o entorno e naquelas que estabelece com seus destinatários[4].

SOBRE O TEXTO.

Adianto que o Novo Testamento, porção das escrituras cristãs onde se encontra o Evangelho de São Lucas e a passagem a ser examinada, foi escrito em grego. Não me deterei nas especificidades das palavras gregas que significam espada, duas dessas palavras são as mais usadas no Novo Testamento: “ziphos” e “machaira”. A palavra ziphos abrange uma gama muito ampla de modelos e tipos de espada e a palavra machaira designa um modelo mais curto de espada, bem comum no mundo romano e geralmente usado por gladiadores, essa última é usada na passagem em questão (vv.36, 38 e 49).

Dou início essa exegese de modo atípico, lembrando as ideias diversas vezes repetidas por Bolsonaro e os bolsonaristas[5], “comprem armas está na Bíblia”, ou como na última pérola presidencial “Jesus não comprou uma pistola por que não tinha”, bem como, mensagens semelhantes expressas em enunciados mais ou menos parecidos pelo atual presidente e seus apoiadores[6], não encontram respaldo nos evangelhos, e o uso feito por eles da passagem que doravante examinaremos fere os princípios de interpretação das escrituras, conforme têm sido exercidos pela Igreja ao longo dos séculos.

Umas das coisas que aprendemos com a hermenêutica é que “um texto fora do contexto gera um pretexto”, o contexto maior dos evangelhos e a atitude de Jesus promovem uma atmosfera de não beligerância, podemos afirmar que essa atmosfera encontra sua mais bela síntese no sermão da montanha (Mt.5-7), donde destaco: “Bem-aventurados os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus”. (Mt. 5:9), além disto, o Novo Testamento enfatiza que, em Cristo, a vida se pauta pela lei do amor, que se confunde com a própria natureza divina (I Jo. 4:7ss.), partamos dessas considerações acerca do contexto maior, para a consideração do contexto mais imediato. Neste contexto o versículo que introduz o assunto: “E disse-lhes: ‘Quando eu vos enviei sem bolsa, nem alforje, nem sandálias, faltou-vos alguma coisa?’ — ‘Nada’, responderam”. (v. 35) relaciona-se com a passagem bíblica onde Jesus designa os seus discípulos para a missão de anúncio do evangelho (Lc. 10), em especial, o seguinte versículo: “E não leveis bolsa, nem alforje, nem sandálias; e a ninguém saudeis pelo caminho” (v.4). Dessa forma, Jesus estabelece um princípio no qual os discípulos deveriam contar com a providência divina e com a hospitalidade das pessoas às quais se dirigiam, a ausência da bolsa, do alforje e de sandálias (entende-se pares extras) indicaria o estado de despojamento de bens (chamaríamos hoje de vulnerabilidade), essas características lhes seriam benéficas a medida que, enquanto andarilhos, não chamariam atenção de salteadores; nenhum  criminoso haveria de se interessar em assaltar alguém nessas condições, a ausência de espada, indicaria que não tinham bens a proteger e, por outro, lado, que não eram criminosos; sem bolsa, não teriam provisões e contavam com a  boa vontade de anfitriões amistosos.

Porém, a partir da prisão de Jesus a disposição das pessoas para com os seus discípulos iria mudar, Jesus alertara que seus destinos estariam ligados ao dele, na aceitação e na rejeição (Jo. 15:20), por essa razão ele lhes diz: “Agora, porém, aquele que tem uma bolsa tome-a, como também aquele que tem um alforje; e quem não tiver uma espada, venda a veste para comprar uma”. (v. 36). Era habitual aos viajantes carregar uma bolsa e um alforje, essa orientação de Jesus não significa que ele queria que os discípulos se armassem mesmo que fosse para resistir à sua prisão que estava por vir, isso é evidente nos versículos adiante onde Jesus repreende a reação de Pedro, e, restabelece a “orelha” ao homem ferido (vv. 49-51, vide tb. Mt.26:51-54).[7]

“[…] o que não tem espada, venda a sua capa e compre-a;” que significado têm essas palavras do Mestre do amor? Como entendê-las a luz de seu contexto?  Geralmente a interpretação dessas palavras vão em duas direções que embora diferentes não são contraditórias, antes, são convergentes.

Primeiro, entende-se que se os discípulos não poderiam mais contar com a hospitalidade das pessoas precisariam da bolsa (aqui a palavra é equivalente à nossa carteira[8]) para obter viveres e da espada para   abatê-los, ou seja, caçar seu próprio alimento (se fosse necessário), dessa forma a interpretação está diretamente ligada ao evento narrado e suas consequências imediatas.

A segunda direção considera a natureza escatológica das profecias veterotestamentárias, que se avolumaram num horizonte de expectação[9] nutrido pelo ministério dos profetas, a leitura deste versículo (v.36) deve ser feita em natural conexão com o próximo; “Pois eu vos digo, é preciso que se cumpra em mim o que está escrito: Ele foi contado entre os iníquos. Pois também o que me diz respeito tem um fim”. (v.37). Segundo São Lucas, Jesus aplica a si as palavras escritas no livro do profeta Isaías (53:12), trecho comumente chamado de “o oráculo do Servo do Senhor”, importante notar que São Lucas é o único a fazer essa aplicação.[10] Na passagem em questão, o profeta diz que o Messias seria “contado com os transgressores”, Jesus afirma que essa profecia se cumpriria nele, todavia, seus discípulos não eram transgressores e não tinham bens a proteger, logo o porte das espadas serviria como mais um mote para que as autoridades justificassem a prisão de Jesus, afinal por essa perspectiva, Jesus não seria considerado uma boa pessoa, posto que, seria contado (estava junto) a transgressores. E isso, de a acordo com Jesus, tinha que acontecer, “Porque o que está escrito de mim terá cumprimento”.

Outro dado interessante, considerado por exegetas é a probabilidade que o Mestre soubesse que dois discípulos (Pedro e outro) portavam espadas[11], pois assim que dirige a palavra aos discípulos, ele ouve em resposta: “Senhor, eis aqui duas espadas”. (v.38), ao que responde: “Basta” (ACF), em outra tradução “É o suficiente” (BJ), a primeira tradução considera que Jesus estaria colocando um ponto final naquela conversa, após constatar que os discípulos o interpretavam literalmente, trazendo as duas espadas, a segunda tradução segue em direção à interpretação que Jesus estaria dizendo que duas espadas eram suficientes para que no ato de sua prisão ele fosse contado entre os transgressores. De qualquer modo, ambas as direções convergem no significado que Jesus não queira que seus discípulos se armassem e tampouco, que considerassem a atitude beligerante como meio de defesa de si próprios (ou do evangelho). Lembrando que neste mesmo capítulo a narrativa se desenvolve apresentando-nos a prisão de Jesus, a reação violenta de um discípulo[12] e a exortação que este sofre por tal reação, conforme já descrevi acima.

CONSIDERAÇÕES FINAIS.

Esse breve artigo não é uma leitura exclusiva, não se pretende original e tampouco pretende ser uma fórmula para a leitura correta dos textos bíblicos, é apenas a aplicação muito simplificada de parte daquilo que tenho aprendido em anos de estudo e exercício da exegese e hermenêutica aplicada à Bíblia, e que com certeza tem no cenário teológico muitos representantes mais capacitados em realizá-lo do que que mesmo possa fazer. Meu desejo é que esse escrito sirva a todos os que se interessam por esse assunto como uma ferramenta que auxilie ainda que minimamente o discernimento entre a verdade e o equívoco; equívoco no qual é possível ser enredado todo aquele que pretenda interpretar as Escrituras, principalmente se por alguma razão deixar de considerar o centro do qual se irradia todo o seu significado, e esse centro é o amor, amor de Deus corporificado em Jesus, o Cristo, que se entregou por nós, sem opor violência a violência, mas, opondo a ela o amor.

Aquilo que se tem configurado como uma forma de “armamentismo cristão” não tem relação alguma com a missão, a mensagem e a pessoa de Jesus. Isso é tão patente e foi reconhecido precocemente no interior do cristianismo ainda nascente, cerca de aproximadamente trinta anos após o ministério terreno de Jesus, quando o apóstolo São Paulo escreveu à comunidade cristã na cidade de Corinto: “Porque as armas da nossa milícia não são carnais, e sim poderosas em Deus, para destruir fortalezas, anulando os sofismas e toda altivez que se levante contra o conhecimento de Deus, e levando cativo todo pensamento à obediência de Cristo, […]” (II Cor. 10:4-5 os grifos são meus). Esse ensino do apóstolo está em total concordância com as palavras de Jesus Cristo, no evangelho de São Lucas 22:36-51 e São Mateus 26: 51-56 cujo significado objetivo é ensinar-nos a depositar simples confiança na providência de Deus, e não resistirmos ao mal com o mal, antes fazer verdadeira a confiança na oração que nos ensinou o Mestre: “[…] não nos deixeis cair em tentação, mas livra-nos do mal [pois teu é o reino, o poder e a glória para sempre. Amém]!” (Mt.6:13).


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.

ANDRADE, H. DE. Bolsonaro contraria a Constituição e diz que “minorias têm que se adequar”, 2022. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2022/07/15/bolsonaro-defende-falas-transfobicas-minorias-tem-que-se-adequar.html. Acesso em 17/10/22.

BÍBLIA. Português. Bíblia de Jerusalém – Nova edição E revista, 2. imp. São Paulo: Paulinas, 1992.

BÍBLIA. Português. Bíblia Tradução Ecumênica – 2ª edição. São Paulo: Loyola, 1995.

Bíblia João Ferreira de Almeida Corrigida Fiel (ACF). São Paulo: Sociedade Bíblica Trinitariana do Brasil (SBTB), 2007. 

Boulos e Nikolas Ferreira debatem planos de governo de Lula e Bolsonaro: Visão CNN. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=6vdCV4ZZkx4&t=1951s. 12/10/2022. Acesso em 17/10/22.

DA REDAÇÃO. “Comprem suas armas está na Bíblia”, diz Bolsonaro a produtores rurais, 2022. Disponível em https://cultura.uol.com.br/noticias/51389_comprem-suas-armas-esta-na-biblia-diz-bolsonaro-a-produtores-rurais.html. Em 10/08/2022.  Acesso em 17/10/22.

FRIBERG, B., FRIBERG, T. (Ed.) O Novo Testamento em Grego Analítico, São Paulo, Vida Nova, 1987.

HOEKEMA, A. A. A Bíblia e o Futuro, trad. Karl H. Kepler, São Paulo, Casa Presbiteriana, 1989.

MEDEIROS, T. Bolsonaro diz que Jesus Cristo ‘não comprou uma pistola porque não tinha, 2022. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2022/06/15/bolsonaro-diz-que-jesus-cristo-nao-comprou-pistola-porque-nao-tinha.htm. Acesso em 17/10/22.

MOURA, M., PUPO, A. Coligação do PT entra com representação no STF contra Bolsonaro, 2018. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/politica/eleicoes/2018/noticias/agencia-estado/2018/09/03/coligacao-do-pt-entra-com-representacao-no-stf-contra-bolsonaro.htm. 03/09/2018. Acesso em 17/10/22.

RIENECKER, F. ROGERS, C. Chave Linguística do Novo Testamento Grego, Trad. Gordon Chown e Júlio Paulo T. Zabatiero, São Paulo, Vida Nova, 1985.

TUVUCA, M. Bolsonaro fala sobre “luta do bem contra o mal”, 2022. Disponível em  https://www.cnnbrasil.com.br/politica/em-cerimonia-em-brasilia-bolsonaro-fala-sobre-luta-do-bem-contra-o-mal/. 05/04/2022. Acesso em 17/10/22.

VINE, W. E. Dicionário Vine: O significado Exegético e Expositivo das Palavras do Antigo e do Novo testamento, Trad. Luís Aron de Macedo 4ª edição, Rio de Janeiro, CPAD, 2004.


[1] Em cerimônia em Brasília, Bolsonaro fala sobre “luta do bem contra o mal. Disponível em  https://www.cnnbrasil.com.br/politica/em-cerimonia-em-brasilia-bolsonaro-fala-sobre-luta-do-bem-contra-o-mal/. 05/04/2022.

[2] Bolsonaro contraria a Constituição e diz que ‘minorias têm que se adequar’. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2022/07/15/bolsonaro-defende-falas-transfobicas-minorias-tem-que-se-adequar.htm. 15/07/2022.

[3] Coligação do PT entra com representação no STF contra Bolsonaro. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/politica/eleicoes/2018/noticias/agencia-estado/2018/09/03/coligacao-do-pt-entra-com-representacao-no-stf-contra-bolsonaro.htm. 03/09/2018.

[4] Na perspectiva da teologia católica sugerimos a leitura da constituição dogmática Dei Verbum, que trata bem especificamente sobre a questão da Revelação Divina, sua interpretação e transmissão, temos ali enunciado o princípio de catolicidade no qual a Igreja para entender partes da Bíblia usa toda a Bíblia.

[5] “’Comprem suas armas está na Bíblia’, diz Bolsonaro a produtores rurais”. Disponível em https://cultura.uol.com.br/noticias/51389_comprem-suas-armas-esta-na-biblia-diz-bolsonaro-a-produtores-rurais.html. Em 10/08/2022.  Vide também a frase mote do presente texto:

“Bolsonaro diz que Jesus Cristo ‘não comprou uma pistola por que não tinha’”. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2022/06/15/bolsonaro-diz-que-jesus-cristo-nao-comprou-pistola-porque-nao-tinha.htm. 15/06/2022.

[6] Vide: “Boulos e Nikolas Ferreira debatem planos de governo de Lula e Bolsonaro: Visão CNN’. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=6vdCV4ZZkx4&t=1951s. 12/10/2022.

[7]“[…] Embainha a tua espada, porque todos que lançarem mão da espada, à espada morrerão”. (Mt.26:54). Palavras muito significativas em relação à essa questão.

[8] Bolsa, em grego: “ballation”.  O alforje é “pera”, segundo Vine,” bolsa ou sacola de couro de viajante para guardar provisões” (VINE, 2002, p. 386).

[9] Expectação da qual participavam os discípulos, e mesmo Jesus na medida que em as cumpria, cônscio que se cumpririam.

[10] Ele o faz também em At. 8:32-33, a representação do Servo Sofredor (aplicada a Jesus) dá sentido a outras passagens lucanas: At. 3: 13,26; 4:27, 30.

[11] O que proporcionaria a oportunidade do ensino que concluía narrativa, aquele quanto às funestas consequências para aqueles que confiam no poder das espadas, “por elas serão feridos”!

[12] O evangelista São João (Jo.18:10) é o único que nos informa os nomes do discípulo que fere (São Pedro) e do homem que por ele foi ferido (Malco).

Deixe um comentário